Ainda estou aqui tem chances de Oscar?
E por que algumas coisas no filme me desagradaram
Em 1996, o Brasil foi surpreendido ao saber que um filme nacional tinha sido indicado ao Oscar. O quatrilho, de Fábio Barreto, concorria na categoria de filme estrangeiro. Naquela época o nosso cinema não tinha grandes bilheterias e as produções que encantaram o povo tinham ficado num passado bem distante. Descobrir que O quatrilho estava no Oscar era a mesma coisa que descobrir, um ano depois, que tínhamos um brasileiro na semifinal de Roland Garros, mas que não tinha a menor chance de ser campeão (O Guga foi campeão em 1997 e mais duas vezes para calar com cadeado a boca de qualquer analista com complexo de vira-lata).
Muita gente foi ao cinema, ou viu o filme depois na TV, e não ficou tão decepcionada quando ele não trouxe o hominho dourado pra casa.
Em 1999 a história foi diferente. Central do Brasil, de Walter Salles, encantou o país e começamos a torcer como se tratasse de uma final de Copa do Mundo. Concorrendo a melhor filme estrangeiro e melhor atriz, com direito a Fernanda Montenegro fazendo campanha nos programas de entrevista dos EUA dizendo que ela era a Velhinha de Ipanema, uma referência a Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Nós tínhamos certeza que ganharíamos no mínimo um dos prêmios, possivelmente os dois.
Fernanda Montenegro perdeu para Gwyneth Paltrow, uma boa atriz que consolidou uma carreira tão sem sal que acabou casando com Chris Martin, vocalista da banda mais sem sal do planeta (o Coldplay). Até hoje tem gente cobrando esse Oscar, pedindo VAR, xingando a academia. Mas e melhor filme estrangeiro?
A vida é bela, de Roberto Benigni, tirou essa das nossas mão. Um ator famoso na Itália por suas comédias sem graça para quem não era italiano fez um filme bonito que contava a história de um pai que brincava com o filho dentro de um campo de concentração para que ele não percebesse os horrores do holocausto. Emocionou muita gente e teve até quem, depois de ver, considerasse que realmente não era nossa vez.
Mas como faz pra ganhar um Oscar? Aqui vou pegar o exemplo mais claro que é o de Cidade de Deus. Produzido em 2002, o filme de Fernando Meirelles não foi nem indicado para o Oscar em 2003. O clima era de revolta. Ainda em 2003, a produtora Miramax começou a distribuir Cidade de Deus no exterior e fez um lobby enorme. Em 2004, a produção brasileira foi nomeada a 4 categorias: melhor direção, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia e melhor edição. Até o torcedor mais fanático refletiu se o VAR não tinha exagerado. Mas como é que um filme é negado a melhor filme estrangeiro em um ano e recebe 4 indicações no ano seguinte? Eu não sei, mas o dinheiro encontra as brechas no regulamento.
Ainda estou aqui tem produção do Globoplay, que garantiu que ele ganhasse a importância merecida no cenário nacional, e distribuição da Sony, que está fazendo campanha forte nos Estados Unidos e pediu que o filme fosse considerado em 8 categorias: melhor filme, filme estrangeiro, direção, roteiro adaptado, atriz (Fernanda Torres), ator coadjuvante (Selton Mello), fotografia e montagem. O diretor é Walter Salles, o mesmo de Central do Brasil. Esses ingredientes nos deixam sonhar com uma volta ao Oscar depois de 20 anos (tivemos a animação O menino e o mundo participando em 2016 e o documentário Democracia em vertigem, em 2020, mas o último longa foi Cidade de Deus).
E as chances de ganhar alguma coisa? Ainda estou aqui já venceu prêmios internacionais e liderou as bilheterias brasileiras na semana de estreia. No Oscar, a coisa é diferente. Mesmo com o aumento da diversidade na academia, ainda existe uma dificuldade de passar sentimentos nossos para outra língua (os caras têm uma dificuldade danada de ver filme com legenda). Além disso, não sabemos quais serão nossos concorrentes na categoria de filme estrangeiro, que é a mais provável de indicação. Por último, para mim, Ainda estou aqui não é tão bom como a “torcida” faz parecer.
Alerta para possíveis spoilers.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que o filme tem muitos méritos e a família de Rubens Paiva gostou do resultado. Qualquer obra que discuta minimamente a falta de punição a crimes contra a humanidade tem meu apoio, e Ainda estou aqui vem em boa hora no momento que novos golpistas tentam uma manobra para uma auto-anistia, como os militares fizeram em 1979 anos antes de devolver o poder a governos civis. Pra você ter ideia, o militar denunciado pelo assassinato de Rubens Paiva não só está livre depois de todos esses anos, como recebe mais de R$ 35 mil por mês pagos com os nossos impostos.
Ainda estou aqui tem fotografia e trilha sonora lindas (a música ficou por conta de Warren Ellis, parceiro de composições de Nick Cave), boas atuações e um recurso muito legal que transforma as filmagens de uma das personagens em parte do filme. Quando a filha de Rubens Paiva, Veroca, saca sua filmadora, vemos imagens que parecem ter saído de um acervo pessoal. Dá um toque especial ao filme, que é estruturado em três partes.
A primeira parte parece uma novela do Manoel Carlos com cinematografia melhor e sem os perrengues que até um personagem de novela tem. A família de Rubens Paiva vive no mais completo e absoluto paraíso, perturbado apenas por uma notícia de sequestro de um embaixador e uma blitz que para o carro de um amigo de Veroca. É tudo lindo, rico e perfeito.
Quando o ex-deputado é conduzido para depoimento por homens não uniformizados que não são identificados (São militares? Policiais? Militantes de esquerda? Ninguém sabe) uma segunda parte angustiante e sombria tem início. Eunice, a mulher de Paiva interpretada por Fernanda Torres, fica uns dias com esses homens em casa aguardando o retorno do marido, até que ela mesma e uma das filhas são levadas para interrogatório. Ela fica um bom tempo na cadeia até que finalmente é libertada. Ela passa então a procurar pelo marido e a ter problemas financeiros, até que um jornalista conta que tem informações de que Rubens Paiva tinha sido assassinado, mas que não sabia onde estava o corpo.
Eunice decide se mudar para São Paulo e assim começa a terceira e pior parte do filme. Se a primeira parte era uma novela de Manoel Carlos, essa última poderia ser uma de Glória Perez. Já madura, Eunice faz faculdade de direito e consegue depois de muito tempo o atestado de óbito de Rubens. Parece aqueles finais com superação de quem se esforçou e chegou lá, mas é só com aquelas letrinhas no final que quem não conhece a história percebe que na verdade não há desfecho. Rubens Paiva segue desaparecido.
Uma das coisas que mais me incomodou é uma certa humanização dos agentes da ditadura. Um dos rapazes que estava na casa dos Paiva chega a jogar pebolim com um Marcelo Rubens Paiva criança. O soldado que busca e leva Eunice para a cela faz questão de dizer que não concorda com o que está acontecendo. Se houvesse um descompasso grande assim entre seus agentes, a ditadura não teria durado 21 anos.
Outra coisa que deixa um gostinho amargo na garganta é tratarem a resistência armada como se fossem criminosos comuns, e não uma reação a um regime ditatorial que usava a força do estado para perseguir, torturar, matar e tirar outras liberdades individuais de seus cidadãos. Walter Salles faz questão de distanciar Rubens Paiva dessas pessoas que são chamadas de terroristas algumas vezes ao longo do filme.
É como se o regime não eleito, que matou, torturou e censurou por 21 anos, tivesse cruzado uma linha da razoabilidade ao matar e ocultar o cadáver de um ex-deputado rico que não fazia parte e não concordava com a luta armada. A realidade é que a linha da razoabilidade já não estava visível no retrovisor muito antes de Rubens Paiva ser assassinado e ele não foi um caso isolado, um erro dos militares. As histórias de tortura, até de crianças, são abundantes.
No documentário de Nina Simone, What happened, miss Simone?, a cantora, pianista e compositora diz ser a favor da violência para combater a violência. No lugar disso, ela escreveu Mississipi goddam, que teve o impacto de muitas armas contra o racismo.
Esse debate não é simples e já provocou distanciamento de amigos muito mais inteligentes que eu e você. Sartre e Camus brigaram ao discordar sobre o uso da violência em revoluções, em especial da União Soviética. Sartre era a favor e Camus contra. Concorde ou não, o que jamais deveríamos fazer é estabelecer qualquer tipo de equivalência entre o agressor e o oprimido que se levanta.
No nosso cotidiano, brincamos de Roberto Benigni com nosso subconsciente. Tentamos nos convencer de que tudo está bem e que os massacres diários são acidentes, coisas colaterais de um mundo mais ou menos funcional. Tentamos fechar os olhos para uma menina negra que morre com uma bala da PM, ou uma civilização que é praticamente aniquilada por seguidos bombardeios de um país vizinho para não enlouquecer, mas o limite da decência nos impele a não colocar no mesmo patamar agressor e vítima.
Eu não acho que Walter Salles tenha feito isso de caso pensado, mas o crítico Inácio Araújo resume bem o cinema de Salles. Ele diz que o diretor tem uma tendência a conciliar conflitos e suavizar situações políticas. É uma visão de mundo. O irmão dele, João Moreira Salles, virou até meme ao se autodenominar classe média em uma entrevista a Pedro Bial (a família Moreira Salles é multibilionária).
Mesmo com todas as possíveis distorções, Salles é um dos melhores cineastas que temos, fez filmes memoráveis e agora aborda um assunto importante. Se ganhar um Oscar, vou sair pra Paulista para comemorar como bom torcedor.
Que sua semana seja mais dourada que o hominho do Oscar.
Eu fiquei pensando depois, apesar de todo o histórico conciliador do Salles, que o esforço de afastamento da luta armada pode também ter sido algo da família que ele respeitou, né? Fica mais difícil, acho, de avaliar algumas decisões em um filme com tantas variáveis como esse (baseado num livro do filho, história real, momento delicado como um todo pra democracia etc). Mas, olha, chorei, viu.
Brincadeira, adorei! :)