Buenos Aires, Montevidéu, Wilco, Benedetti e Kuitca
Descobri que Benedetti tirava duas horas de almoço para escrever “A trégua”. Que delícia tirar duas horas de almoço
Eu tinha 30 dias de férias por vencer e acabei marcando durante a turnê do Wilco pela América do Sul. Vai que.
Comprei o ingresso para Buenos Aires e estruturei a viagem, mas só na véspera do show em Montevidéu, quando eu já estava na Argentina, eu resolvi vê-los também no Uruguai.
Montevidéu me fez pensar na forma como estruturamos a nossa rotina. Tudo sempre muito corrido, sempre disponível. A capital uruguaia é diferente, parece que vive numa velocidade só dela. É o Ademir da Guia ou o Zidane das cidades. Os cafés começam a abrir 9 e meia da manhã, os museus só depois do almoço e ao fim do dia todos estão fechando as portas. Tenho certeza que reclamaria das coisas fechando cedo demais se São Paulo fosse igual, mas me encantou o ritmo montevideano.



Sem ter muito o que fazer em dias muito frios, acabei percorrendo cafés que foram frequentados por Eduardo Galeano e Mario Benedetti. Descobri que Benedetti tirava duas horas de almoço para escrever “A trégua” no Café Sorocabana, que fechou e reabriu no mesmo endereço com algumas homenagens ao autor. Que delícia tirar duas horas de almoço.
O legal de ter visto 3 dos 4 shows do Wilco na América do Sul é que, como eles mudaram um pouco o repertório, as apresentações foram complementares. No Uruguai eu pude ouvir “Wishful thinking”, “I am my mother”, “I’ll fight”, “War on war”, “Love is everywhere (Beware)”, “California stars”, “Falling apart (right now)”, “Walken” e “I got you (At the end of the century)”. Na Argentina eles incluíram “Hate it here”, “A shot in the arm” e “Outtasite (Outta mind)”.
O público brasileiro foi foda, mas o argentino meteu “olê olê olê Wilco Wilco” na primeira música. Até o Jeff falou: “calma, vai ter tempo para isso”. Ele deu risada toda hora com a galera cantando riffs. Antes de “Impossible Germany”, ele disse: “Essa é mais difícil de cantar junto”. “Nós conseguimos”, gritou um cara. “Eu aposto que sim”, respondeu o Jeff dando risada.
Durante o show, várias pessoas pediram músicas. “Spiders (kidsmoke)” foi a mais pedida, e um chato berrava a cada intervalo: “Spideeeeer”. A música até estava no set como “opcional”, mas eles acabaram trocando por “Outtasite (Outta Mind)”. Parece que a chatice fez com que eles deliberadamente escolhessem tocar outra. Bom para mim que já tinha escutado “Spiders” no Brasil.
Buenos Aires é uma cidade mais acelerada que Montevidéu, mas além de ser igualmente bonita e arborizada, ela guarda seus encantos em pequenas coisas como a forma de cobrança da passagem de ônibus. Você fala para o motorista para onde você vai e ele debita do teu passe. Uma cobrança feita 100% na base da confiança.
Eu já tinha visitado Buenos Aires algumas vezes, mas nunca tinha ido ao Malba. Além do Abaporu, de Tarsila do Amaral, e uma sala dedicada a Diego Rivera e Frida Kahlo, o museu estava com uma exposição do artista argentino Guillermo Kuitca, que eu não conhecia. Uma imagem recorrente dos quadros de Kuitca (e outros tipos de meios produzidos por ele) é a cama.
Pelo que eu pesquisei, ele usa a imagem da cama, onde acontecem sonhos, descanso, sexo e morte, quase como uma extensão humana. Então, a cama vazia pode significar o desaparecimento das pessoas durante a ditadura ou a solidão em outros momentos.
Que a sua semana seja melhor que os shows do Wilco e tenha mesma elegância e cadência de Montevidéu.