Isabella é Schlop
Se você gosta de Cat Power, Daniel Johnston, Guided by Voices, Yo La Tengo, Brian Jonestown Massacre, Silver Jews e coisas relacionadas, a chance de de você gostar desse novo projeto é grande
- Eles não liberaram ainda
- O que?
Nesse período ela estava lutando ainda pra registrar as músicas e fazer a distribuição. Vocês não têm noção da burocracia que é para colocar um disco rodando nas plataformas de streaming.
- Os caminhões
- Que caminhões?
Enquanto ela compunha, tocava todos os instrumentos, cantava, gravava, fazia pós-produção, arte do disco e um zine datilografado com ilustrações para acompanhar o lançamento, ela mantinha uma rotina de trabalho pesada tentando resolver problemas de uma empresa de sustentabilidade. Por esse motivo, acreditei que pudesse ser caminhões com equipamentos do trabalho dela.
- Os caminhões com ajuda humanitária em Rafah.
Com todo o turbilhão de coisas pessoais da vida dela, ela tem se preocupado com o conflito na Faixa de Gaza e até me cobrado pela cobertura da guerra. Mas o título “canções de amor para o fim do mundo” não é sobre a guerra.
Antes de mais nada, aperte o play.
Nós assistimos ao filme Procura-se um Amigo para o Fim do Mundo, com o Steve Carell e a Keira Knightley, faz um tempo. Com tantos eventos apocalípticos vividos recentemente, parecia uma boa, e não demorou muito para que ela aparecesse com a faixa que inspirou o título do disco.
Eu não sei o que veio primeiro, o conceito de álbum de fotos, quando uma pessoa colocava num mesmo livrinho as fotos de um aniversário, uma viagem ou um evento, ou o álbum de músicas, quando um artista faz uma coleção de músicas ligadas entre si. O álbum da Isabella, ou Schlop, não se aproxima de nenhum dos dois. Ele se parece mais com um diário que você vai escrevendo e muitas vezes os acontecimentos da nossa vida mudam completamente de um dia para o outro. Ela foi fazendo dessas músicas anotações do cotidiano e do que ela sentia no último ano.
Cronologicamente, a primeira música que ela escreveu foi a Música do Fera. Foi a maneira de ela se dedicar. Eu já falei um pouco sobre o meu sentimento de ser musa nesse textinho (no caso, eu sou o fera). O álbum ainda tem mais uma música que eu apareço como tema (cheveux blancs et noirs sobre minhas noias com os cabelos brancos que ela compara com o brilho das estrelas em uma melodia altamente viciante com letra em francês).
Eu ainda tenho uma pequena contribuição como letrista de Lua Rosa, mas é impressionante a habilidade que ela tem de achar soluções para as músicas. Ela me perguntou se eu tinha alguma ideia de melodia e sendo um completo analfabeto musical eu respondi que não. Quando ouvimos em uma playlist Angel of Montgomery, eu achei que aquele seria um ritmo legal para a música, mas ela entrou no quarto com uma guitarra, uma meia-lua e uma gaita (que ela nunca tinha tocado na vida), e saiu com uma música muito mais próxima de um Brian Jonestown Massacre do que de John Prine. Perfeita, melhor do que eu poderia sonhar.
Aliás, todas as músicas ela faz de uma forma muito rápida e, pra mim, parece que com certa facilidade. Algum dia um jornalista mais isento que eu vai ter que perguntar melhor sobre esse processo de criação, porque pra mim parece sempre um sentimento que ela tem que se transforma rapidamente em música. A única etapa perceptível entre ela verbalizar algum sentimento e a música pronta é apenas ela dizendo “Eu fiz um rascunho aqui”, só que geralmente esse rascunho é quase uma música pronta.
Trilho do Trem é uma observação externa sobre nossas aflições cotidianas, mas que o observador parece estar passando pela mesma coisa.
Enough, junto com b-sides of musicians who committed suicide, acho que são as primeiras músicas com letra em inglês que ela já fez e acabou virando a língua que ela se sente mais à vontade para cantar. As duas parecem complementares, sobre inadequação e não se sentir boa ou bonita o suficiente, enough de uma maneira mais melancólica e b-sides com uma nota mais cômica e um ritmo mais alegre.
Quando vão terminar de construir são paulo ela pegou uma frase de um texto da Gaía e transformou em uma música pensando na gentrificação e no momento ruim que SP passa. É de certa forma uma declaração de amor à cidade, de saber que com tudo o que tem de errado existe uma vontade de continuar aqui para fazer as coisas melhorarem. Essa música quase não entrou no álbum, mas quando ela fez funny blades e dangerous glitter ela voltou a ouvir e achou que valia a pena.
Dangerous glitter é uma coisa meio de repentista que você dá duas palavras e ele sai cantando. Ela viu os livros Dangerous Glitter, do Dave Thompson, e Go to work and do your job. Care for your children. Pay your bills. Obey the law. Buy products, do Noah Cicero, e fez uma música com os títulos.
Funny blades é a que ela mais gostou até agora, talvez por ser a última. Tem a ver com aquele vídeo meio engraçado meio perturbador da Britney dançando com umas facas e o sentimento de ser deixado de fora de alguma coisa.
Mas o que é Schlop? Foi uma alcunha engraçadinha que ela arrumou para o projeto porque não queria usar o próprio nome, algo como Cat Power ou Smog. É como um Ziggy Stardust nascido na Terra para dar a coragem que faltava à Isabella para tocar todas as músicas que ela pensou e concretizou na intimidade do nosso apartamento.
Canções de amor para o fim do mundo está sendo lançado hoje, mas já é o disco que eu mais ouvi no ano e o meu favorito. Se você gosta de Cat Power, Daniel Johnston, Guided by Voices, Yo La Tengo, Brian Jonestown Massacre, Silver Jews e coisas relacionadas a chance de de você se apaixonar é grande. Ouça, compartilhe com os amigos, fale sobre ele nas suas redes sociais. Esse é um projeto absolutamente artesanal. Ela idealizou, gravou e cuidou de todas as burocracias de registro e distribuição sozinha e não tem dinheiro, circuito sertanejo ou pistolão pra colocar ela no programa do Luciano Huck ou da Ana Maria Braga. Pra esse projeto ganhar alguma notoriedade vai ter que ser na base da indicação de quem ouviu e gostou. Espero que você goste.