Acho que estou com o tal cérebro podre que tão dizendo por aí e não consegui pensar em nada pra escrever aqui. Esse texto (não revisado) é um argumento para um filme que eu escrevi durante a pandemia. Que a sua semana seja melhor que a música do Itamar Assumpção. Espero estar mais inspirado na próxima.

Ele abriu a porta do quarto, olhou para o chão e viu um carpete verde escuro manchado e com alguns buracos, a cama com uma colcha florida de poliéster. No banheiro, muito limo, um chuveiro elétrico pequeno e uma daquelas cortininhas de plástico no box. Ele se virou para o recepcionista e disse: “Vou ficar aqui esta noite”.
Ele deu cinco reais de gorjeta e fechou a porta. “Será que cinco reais é uma boa gorjeta?”, ele pensou antes de dizer para si mesmo em voz alta: “Foda-se”.
Abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e retirou dali a cópia do novo testamento. Será que esse tipo de hotel de terceira linha não tem dinheiro para comprar a bíblia inteira? Arrancou todas as folhas em branco, abriu a janela e jogou o fino evangelho na rua. Um catador de papelão que passava por ali pegou o livro, folheou um pouco e atirou em sua carrocinha colorida, que naquele horário já estava cheia.
De volta ao quarto de hotel, Adriano enrolava com uma das folhas do novo testamento um cigarro que, pelo cheiro, provou ser de maconha após aceso. Deu duas tragadas e apagou.
Ligou a TV para ter um barulho de fundo
Depois de algum tempo, ele decide instalar um desses aplicativos de encontros. Começou a arrastar para a esquerda fotos de completas desconhecidas. Não, não e não. Até que encontrou uma pessoa interessante. Direita, direita, direita de novo. Sim, sim e sim. Nada.
Alguém finalmente manda uma mensagem.
- Oi
- Oi, como vai? Ele responde.
A conversa para por aí. Mais alguns matchs vêm e vão e ele joga o celular longe. Pega o computador e começa a assistir a um filme pornô. Por pouco mais de 30 minutos ele tenta sem sucesso se masturbar até que passa a prestar mais atenção nos furos do roteiro. Se o cara acabou de acordar quando a camareira entrou, por que a cama estava arrumada? Quem é que arruma a própria cama em um hotel? Em casa era sempre Joana quem arrumava a cama. Ele preferia limpar o ralo da pia e a privada do que arrumar a cama. Que tarefa mais enfadonha. Mesmo assim, tentou mais uma vez se masturbar, mas não conseguiu.
Desligou a TV. Foi até o frigobar e a luz da geladeirinha iluminou o quarto escuro. Pegou uma cerveja e deu alguns goles antes de começar a ler um livro. Depois de avançar algumas páginas, pegou uma caneta do hotel e sublinhou um trecho, coisa que não costumava fazer: “Nós tomamos uma decisão instintiva, depois construímos uma infraestrutura de raciocínio para justificá-la”.
Ele fecha o livro e volta a abrir o computador. Dá um Google no texto sublinhado e encontra a citação no site goodreads.com. Ele percebe que sete pessoas curtiram aquela citação, quatro homens e três mulheres, e manda uma mensagem para todos. Os homens não respondem, duas mulheres o bloqueiam. Ele liga a TV novamente e dá mais uns goles na cerveja antes de dormir com o computador no colo.
A novela já está acabando quando ele acorda e vê que a mulher que não o bloqueou havia respondido seu contato.
- Por que você curtiu essa citação? Pergunta ele.
- Eu gostei da ideia de construir uma infraestrutura de raciocínio para as minhas decisões impulsivas. E você?
- Eu acho que toda minha vida é baseada em uma série de decisões mal pensadas. Depois de 6 meses brigando e outros 2 sem conversar com a minha mulher, eu deixei de tentar construir uma infraestrutura de raciocínio e vim para um quarto de hotel cheio de baratas na Barra Funda.
- Não esperava uma honestidade tão grande já na sua segunda mensagem.
- Desculpa, te assustei?
- Não, tá tudo bem. Por que vocês começaram a brigar?
- Para falar a verdade, parece que as brigas entraram aos poucos e naturalmente na nossa rotina, assim como o trabalho remoto. Aos poucos eu fui perdendo a vontade de transar e hoje mesmo eu broxei tentando me masturbar com um filme pornô.
- Acho engraçada a sua honestidade. Filme ruim?
- Um roteiro cheio de inconsistências.
- Posso estar enganada, mas geralmente o roteiro não é o forte desse tipo de filme. Por que você perdeu o tesão na sua mulher?
- Primeiro eu fiquei com muito medo de pegar o coronavírus e transmitir para alguém, de matar alguém sem querer.
- Sério? Não me coloco esse peso no meio de uma pandemia. Meu medo maior é que essas variantes do vírus se espalhem mais rápido do que as vacinas e a gente viva em um lockdown eterno.
- Não tinha pensado nisso, mas com certeza esse vai ser mais um medo meu.
- Ahahahah, me desculpe por levantar essa hipótese. Mas foram apenas esses medos que te deixaram broxa?
- Ai, essa doeu. Acho que foram os medos somados à sensação de estagnação, de que a minha vida já passou da metade e eu ainda não realizei nada muito importante.
- Quantos anos você tem?
- 40
- Com o avanço da medicina pode ser que você não tenha chegado ainda à metade da sua vida.
- O John Lennon morreu com 40.
- Acho que a menos que você tenha um fã armado rodeando a entrada desse seu hotel fuleiro, essa não é uma boa comparação.
- Você gosta dos Beatles?
- Eu gosto, mas prefiro a Yoko.
- Sério?
- Para citar umas das obras mais bonitas dela: Sim. Veja o que ela fez com o John. Ele era um roqueiro valentão e ela transformou ele em um grande artista e importante ativista, sem contar que ele se tornou uma pessoa melhor ao lado dela.
- Faz sentido. O que você está fazendo?
- Eu estava assistindo a novela, agora acabou. É engraçado que mesmo uma reprise desperte tanto entusiasmo. Acho que a pandemia nos deixou carente demais.
- Eu queria te ver. Faz muito tempo que eu não encontro ninguém e não converso assim com alguém.
- Eu tomaria uma cerveja agora, mas o problema é que já passa das 10 e está tudo fechado.
- Onde você mora?
- Olha, não me leve a mal, mas eu acabei de te conhecer, não vou te convidar para vir aqui em casa e também não vou passar a noite em um quarto cheio de baratas.
- Ia dizer para fazermos uma caminhada.
- Acho que não me sentiria segura andando com um desconhecido na rua.
- Ok, tenho uma ideia. E se a gente se encontrar dentro de um ônibus?
- Não sei
- Você pode descer no ponto que quiser e tem o apoio do cobrador.
- E qual ônibus nós pegaríamos?
- Onde você mora?
- Santa Cecília
- Perto da Angélica?
- Não é longe
- Então pegamos o ônibus terminal Vila Mariana. Quer me passar o seu WhatsApp?
- Pode ser. Me avisa quando subir no ônibus.
Ele tomou um banho rápido, se vestiu e desceu para a rua. Enquanto esperava o ônibus, foi abordado por uma mulher completamente maltrapilha.
- O que você está fazendo todo arrumado na rua uma hora dessas? Perguntou ela.
- Eu tenho um encontro.
- Com quem? Onde? Está tudo fechado, meu amor.
- A gente vai dar uma volta de ônibus.
- Ela topou se encontrar contigo em um ônibus? Ela deve estar muito apaixonada. Venâncio, o playboy aqui marcou de encontrar a gatinha dele dentro de um ônibus. Você acredita?
Venâncio, que estava deitado numa cama de papelão deu risada: “Esse é doido. Vai pagar o passe dela pelo menos?”
O ônibus chega e ele envia uma mensagem.
- Acabei de subir no ônibus. Estou com uma calça jeans, uma camiseta preta e uma jaqueta azul com muitos botões. Minha foto do good reads é um pouco antiga, então os meus cabelos estão um pouco mais brancos.
- Estou indo para o ponto.
Adriano se sentou em um assento duplo no ônibus vazio e colocou o fone de ouvido. A cada ponto, o coração dele ia até na garganta e voltava. Algumas pessoas subiram e desceram do veículo antes de Elena entrar.
Ele já imaginava que ela tivesse entrado, achado ele feio e descido sem falar nada. Já perto da avenida Higienópolis, uma mulher com vestido vinho com bolinhas brancas subiu e começou a olhar como se procurasse alguém.
- Elena?
- Adriano?
- Você sabe que aqui já é Higienópolis, né?
- Eu sei, mas eu moro um pouco para baixo.
- Por um momento achei que você não viria ou que tivesse me achado feio e descido sem falar comigo.
- Essa sua tentativa de consertar o bairro que eu moro deu vontade de descer ahahahah.
Ele tirou o fone de ouvido e eles ficaram um tempo em silêncio, como se o assunto tivesse acabado.
- Qual o plano? Perguntou ela.
- Não sei, vamos andando até onde tivermos vontade. Se você não se sentir a vontade, pode descer antes.
- Acho que eu estava mais a vontade na nossa conversa virtual, mas vou com você até o fim. O que você estava ouvindo?
- Itamar.
- Assumpção?
- Ele.
- Posso ouvir?
- Claro.
Ele dá um dos fones de ouvido para ela e Persigo São Paulo começa a tocar.
O ônibus entra na rua Consolação. Adriano olha para a janela e vê o catador de papelão ser ultrapassado, o novo testamento em cima do carrinho. O ônibus faz um retorno e entra na avenida Paulista. O Conjunto Nacional fica para trás, depois o Masp. A música acaba.
Ela olha para ele e diz: “Vamos voltar?”. Ele acena que sim com a cabeça. Eles levantam e apertam o botão da parada. Ela segura a mão dele e a máscara não a deixa ver, mas ele sorri pela primeira vez em 8 meses. O ônibus para e eles descem.
Eu amo tanto esse texto. Ele merecia um repost, e um dia vai virar um curta 💘
Eu curti também.