Se Adolescência é em plano-sequência, como a câmera voa no segundo episódio? Eu te explico
A nova série da Netflix está dando o que falar e a qualidade técnica é parte desse hype
Bom dia, boa tarde e boa noite.
Na semana passada meu amigo Felipe Rocha apontou que eu voltei a fazer confusão e dei uma informação errada sobre as premiações. Por causa desse discurso legal do Jesse Eisenberg pela vitória de melhor roteiro no Bafta, eu disse que ele tinha ganhado o Oscar. Ele foi só indicado.
Aproveitando o assunto, deixo aqui os textos sobre Ainda estou aqui, Um completo desconhecido e a cerimônia do Oscar. Minha amiga Victoria Mantoan, que também escreve aqui no Substack sobre literatura, maternidade, filosofia, psicanálise etc, resumiu bem a última temporada de filmes: muitos bonitinhos e até legais, mas nenhum que seja arrebatador, daqueles que mudam a vida das pessoas.
Agora vamos falar de Adolescência (a série, não o período da vida). Pode ser que daqui para frente, quem ainda não assistiu, se depare com alguns pequenos spoilers. Aviso dado.
A nova série da Netflix está dando o que falar, não sem razão. Um roteiro bem escrito e boas atuações tratam de temas delicados e extremamente atuais. Bullying, internet na adolescência, paternidade, violência, manosfera e masculinidade tóxica. A história também escancara como lidamos muito mal com tudo isso. Ele esfrega isso na nossa cara quando o policial que lidera a investigação recebe uma lição do filho sobre o significado dos emojis no Instagram e percebe que tudo o que ele tinha deduzido sobre crime estava errado.
Com tantos assuntos urgentes, é curioso que ainda tenhamos atenção para as partes técnicas, como os enormes planos-sequência que são os quatro episódios. Para quem não sabe, plano-sequência é quando o diretor faz uma cena inteira sem cortes. É uma técnica tão antiga quanto o cinema, mas sempre ficamos maravilhados quando ela aparece.
Alfred Hitchcock esbarrou no tamanho dos rolos de filme em 1948 para fazer talvez o primeiro longa-metragem inteiro em plano-sequência. O diretor fez Festim diabólico com cortes imperceptíveis a cada 10 minutos para poder trocar os rolos das câmeras, que poderiam registrar no máximo 11 minutos.
Na história recente, tivemos filmes premiados usando plano-sequência. Birdman e 1917 talvez tenham sido os mais famosos deles. Além de muito ensaio antes das filmagens, a técnica exige um esforço físico de cinegrafistas, diretores e diretores de fotografia.
Em 1991, Richard Linklater mudou o cinema independente com Slacker. O filme não é um plano-sequência, mas dá a impressão de ser. É como se o câmera cansasse dos personagens e fosse revezando no meio, tipo aquelas festas com pessoas chatas que a gente vai trocando de rodinha pra poder sobreviver até o fim da noite. 23 anos depois, ele lançou Boyhood, com cortes não só nos takes, mas também temporais. O cara demorou 12 anos para terminar a produção. Aí embaixo tem Slacker na íntegra, se você tiver com tempo.
Tá, mas se Adolescência é mesmo todo em plano-sequência, como a câmera sai voando no fim do segundo episódio? A equipe de filmagem criou um esquema de revezamento de câmera muito eficiente e eles plugam o equipamento em um drone em questão de segundos. Dá pra ver aqui nesse making of a partir de 5 minutos e 56 segundos.
A ideia inicial era que a câmera sobrevoasse a cidade até o local do assassinato e depois seguisse voo. Essa manobra já seria difícil, mas um dos produtores da série deu a ideia de finalizar o episódio com o pai do suspeito colocando flores na cena do crime. Dá pra ver a van branca com a equipe de filmagem correndo para poder segurar a câmera quando ela pousa no destino final.
Uma trilha sonora emocionante, cantada por um coral de crianças, cobre o barulho do drone. O detalhe é que a voz solitária na música do fim do episódio é da atriz que interpreta a menina assassinada.
O melhor episódio, entretanto (eu ainda não vi o último), é o terceiro. Jamie, o menino acusado de matar uma colega de escola, tem uma sessão tensa de terapia. O plano-sequência, que em alguns momentos parece ser só um capricho técnico, faz toda a diferença. A psicóloga sai da sala, assiste ele por uma câmera de segurança, respira e volta pra terminar a sessão no momento mais pesado da conversa com o paciente (ou o segundo mais pesado). Owen Cooper, que interpreta Jamie, deve ganhar tudo quanto é prêmio pela interpretação nesse episódio. Como diria o auditório do programa Silvio Santos: ele merece.
Tenha uma boa semana e depois me diga o que você achou da série.
ah, e eu nem tinha notado que a série era toda em plano-sequência. Alguém já tinha comentado comigo que o terceiro episódio era e sobre ser incrível ele ser todo sustentado quase que integralmente na sala do encontro, mas, se você não tivesse dito aqui, eu não teria me ligado que os outros três também são..
A temporada dos “bonitinhos, mas ordinários” - essa expressão não saiu da minha cabeça, mas tava com receio de usar pq tenho a sensação de que ela tem uma origem machista (?) mas é como eu pensei mesmo essa temporada hahah
eu adorei a série, né; não sei como é a experiência de ver sem ter filhos. Mas engraçado que a cena que você descreveu em que o pai leva uma lição de emoji do filho me deixou meio exasperada. Não por ele não saber o que os emojis significavam, mas porque ELE NÃO DEIXAVA O MENINO EXPLICAR. O menino não conseguia falar sem ser interrompido, interpelado, questionado. Foi meio exasperador isso. Pra mim ficou: o problema não é nem não saber, mas não conseguir sequer parar um pouco pra escutar. Enfim, adorei; eu acho cafona quando falam que alguma coisa devia ser obrigatória pra um grupo x, mas devia, sim, ser obrigatória pelo menos pra todo mundo minimamente responsável por educar meninos. Pro resto das pessoas também, mas especialmente pra esse grupo rs Gostei que não virou um filme de investigação e o terceiro episódio é realmente um negócio surreal de bom.